27 de janeiro, 3h. 15º sono rolando. O celular
toca. Do outro lado da linha, a editora do jornal A Razão, de Santa Maria,
Clotilde Gama. Ela me pede desculpas por ligar naquele horário. A repórter
escalada para ser plantão não atendia. Ainda meio grogue, sou informado que
houve um incêndio na Boate Kiss e que houve mortos, “Uns cinco”, inicialmente.
Morava relativamente perto, em um bairro adjacente ao Centro
de Santa Maria. Chamo um táxi e parto pra Kiss.
Ao chegar, por volta das 3h20, olho um cenário de guerra.
Caminhões de bombeiros, ambulância, policiais, bombeiros e uma multidão na
esquina da Avenida Rio Branco com a Rua dos Andradas, a rua da Kiss. Alguns que
conseguiram sair da Kiss estavam na esquina, contando o terror que passaram.
Chego na porta da boate, ainda sem isolamento policial. Ainda
há pessoas sendo encaminhadas por ambulâncias ou carros particulares para os
hospitais. Familiares de pessoas que estavam na boate chegam desesperados em
busca de informações. Era uma confusão danada, muita desinformação.
Ainda não se conseguia ter uma noção da tragédia. Em frente
à boate, no estacionamento do supermercado Carrefour, estava uma lona branca
aberta. Embaixo dela, os primeiros corpos. Acho que não passavam de 10.
E a movimentação de policiais e bombeiros continuou, mas já
não saía mais ninguém de dentro da boate. No meio da correria, um bombeiro
comenta sobre o cenário de terror e diz que ficou apavorado com o banheiro.
Fala que tirou uma foto. Peço pra ver. Ele me mostra: uma pilha de gente morta,
uns por cima dos outros.
Quando vi a foto é que comecei a ter noção de que era uma grande
tragédia mesmo. Ainda tentando me recuperar do choque, começo a ouvir
sobreviventes, funcionários da Kiss, policiais, bombeiros e qualquer pessoa que
aparecesse na minha frente.
O telefone toca algumas vezes ainda durante a madrugada. Meus
familiares querendo saber se eu estava bem, colegas jornalistas de várias
partes do país atrás de informações, pessoal do jornal A Razão...
De manhã, caminhões-baú estacionam em frente à Kiss, e
corpos são colocados dentro. São carregadas quatro levas. A essa altura, já
havia cordão de isolamento na Andradas, acima e abaixo da Kiss, ambos feitos
por brigadianos.
Quando saiu a última leva de corpos, parto para o Centro
Desportivo Municipal (CDM), para onde estavam sendo levados os mortos. Ao chegar lá,
fila de familiares para entrar. Policiais militares tentavam organizar. Muito
choro, muitos gritos, muito desespero.
Depois de mais um tempo tentando entender o cenário e fazer algumas
entrevistas, consigo entrar. Vou pra arquibancada de um dos ginásios, tomada
por familiares. Era tudo muito dolorido.
Tenho até uns “brancos” daquela manhã. Não consigo lembrar
exatamente com quem falei nem o que fiz. Tenho só alguns flashes.
Uma das cenas que ficaram na memória foi a de quando entrei
onde estavam os corpos, em um dos ginásios do CDM. Já cobri acidentes, assassinatos,
mutilações e até um esquartejamento. Mas nunca tinha visto centenas de mortos
deitados em fila. Soma-se
a isso familiares chegando a todo momento para o reconhecimento. Dor pra todo o
lado.
Nem sei até que horas fiquei trabalhando no dia 27 de
janeiro. No dia seguinte, começaram os enterros em Santa Maria. Mais
dor. E ainda teve plantão na porta do Hospital de Caridade. E depois na frente
da 1ª Delegacia de Polícia Civil, morada de vários meses.
Aprendi muito com a cobertura da Kiss durante o ano. E não
foi só coisa ruim. Os delegados e policiais civis sempre me receberam bem, me
deram todas as informações e ainda me proporcionaram vários “furos” ao longo dos
meses. Os advogados, de defesa e acusação também facilitaram muito meu trabalho,
sempre com respeito. Graças a essa turma toda, eu também sempre tinha informações
para dividir com os colegas de imprensa, especialmente os que chegavam de fora.
Mas os familiares das vítimas foram um capítulo à parte. Tive
a oportunidade de viajar com eles algumas vezes e conviver o ano inteiro. São pessoas maravilhosas, que
considero minha família. Uma pena conhecê-las nessas circunstâncias.
O certo é que 242 pessoas morreram quando foram só se
divertir. E não é possível pensar numa tragédia dessas proporções sem responsáveis.
Acredito que o primeiro inquérito da Polícia Civil foi o que chegou mais perto.
Se a casa tinha uma saída minúscula, obstáculos antes de chegar à rua, falta de
luzes de emergência, entre outros problemas, alguém foi responsável. E, se isso
não foi fiscalizado, alguém foi responsável.
Os 242 (quase todos jovens, com pouquíssimas exceções)
acabaram se tornado mártires, porque forçaram as autoridades a tomar providências
em todo o país. De uma hora pra outra, notaram que a segurança de frequentadores
de boates, estádios, ginásios, lojas etc era sempre negligenciada. E os próprios
usuários também começaram a atentar para isso.
Não podemos esquecer do que aconteceu. Senão daqui a pouco
descamba de novo. Os familiares estão nessa luta por responsabilizações, sim,
mas também porque querem mais segurança para os filhos de todos, para que a tragédia não
se repita, para que ninguém tenha que enfrentar a dor que eles carregam.
Hoje (e todos os dias) só quero abraçar quem perdeu uma
parte bem importante de si naquela caixa de abelhas e quero abraçar quem sobreviveu vai
carregar marcas físicas e/ou psicológicas pro resto da vida. Passaram-se três
anos, precisamos de mais respostas. Justiça, justiça, justiça.