terça-feira, 23 de setembro de 2008

De olhos abertos para a cegueira do mundo


Em um sábado à noite, saio perturbado da sessão de Ensaio sobre a Cegueira. Estou na Cidade Baixa, em Porto Alegre, e começo a observar alguns detalhes que não enxergava mais. Na Rua Lima e Silva, um guardador de carro pergunta se eu, assim como ele, achava que um carro estacionado estava com os faróis acessos. Respondo que sim e ainda emito a opinião de que o dono do veículo iria ter problemas para dar partida. Sigo meu caminho e percebo que, antes do filme, talvez aquele guardador estivesse invisível. Logo depois, quase sou atropelado por um veículo que dobra na Rua da República. Ele não havia dado o sinal da conversão, e eu, não o vi. Cegueira momentânea?
Segui pensando na visão que temos do mundo. O diretor Fernando Meirelles tem a sua, apresentada em Ensaio sobre a Cegueira, adaptação para o cinema da obra do escritor português José Saramago. Li o livro há uns bons anos e posso dizer que o cineasta (e seus roteiristas) tiveram trabalho para filmar uma história cujos espaço e tempo são indefinidos, repleta de metáforas e com personagens sem nome. O básico: uma epidemia de cegueira que atinge a humanidade. A partir da perda do sentido da visão, vem a barbárie.
Com medo do contágio, o governo decide isolar os primeiros "infectados" em uma espécie de manicômio abandonado. Lá, eles têm que se acostumar a novas regras e hierarquias. Enquanto uns propõem a igualdade de direitos e deveres, outros crêem que podem governar pela força e humilham os restantes. É interessante, tanto no livro quanto no filme, ver essa transformação do homem em um animal que só vive para saciar o apetite de seu instinto. Despojados das facilidades modernas, "os seres humanos" voltam a ser bichos, em busca das necessidades básicas, como comida, bebida e sexo.
A cegueira é branca, muito bem retratada pela fotografia do filme. É o brilho da luz que cega, é o excesso de informações desordenadas que confunde, e não deixa ver como o mundo como ele realmente é. Isso só pode dar em caos. Não é o que estamos vivendo?
Meirelles fez algumas concessões - amenizou a cena dos estupros, por exemplo -, mas não todas. E conseguiu tirar boas atuações de Julianne Moore, Mark Ruffalo, Gael García Bernal, Danny Glover e Alice Braga. Com produção globalizada e filmagens não menos espalhadas (São Paulo foi uma das locações), Ensaio, com o perdão do trocadilho, faz a gente enxergar muitas coisas. Mesmo que em, algumas partes do filme, o choque de realidade nos faça fechar os olhos.